Editorial
Papéis: instrumentos de escrita e trajetória literária
Este número é quase que integralmente baseado em artigos que utilizam as fontes primárias em suas pesquisas e são ligados, em sua maioria, a literatura brasileira.
Na verdade, pensamos que não seria somente a relação entre fontes primárias e literatura. Devemos incluir a esta coletânea, as áreas de biblioteconomia e de museologia, pois, o tratamento que quaisquer arquivos recebem por parte de conhecimentos especializados – arquivologia, biblioteconomia e museologia – o afetam.
Conforme Lena Pinheiro (2006), as fontes primárias correspondem à “literatura primária” e são aquelas que se apresentam e são disseminadas exatamente na forma com que são produzidos por seus autores. Antônio Houaiss no Dicionário Houaiss – da língua portuguesa (2009), esclarece que quando se usa o termo fontes primárias no âmbito da filologia significa que se está trabalhando com o texto ou documento original.
Até meados do século XX, o uso de fontes primárias era quase que restrito aos estudos históricos, embora a crítica textual já se utilizasse dele. Na década de 60 do século passado, com o advento da crítica genética, passou-se a dar mais atenção a este tipo de material, que no âmbito da literatura, é encontrado principalmente nos arquivos pessoais de escritores e em periódicos que tratam do processo de criação. O material dos arquivos pode dar origem à edição de correspondência, a estudos dos manuscritos, sob variados aspectos, por exemplo, confrontando inúmeras versões e cotejando-as com os textos publicados.
Salientamos que o estudo de fontes primárias, oriundas de acervos literários, articulado à produção literária dos escritores, possibilita ao pesquisador a construção de múltiplos discursos tramados entre vida e obra, além de proporcionar a conservação memorialística da imagem autoral. Quando falamos em fontes primárias relacionadas a periódicos lembramos aqui o que escreveu Maria Zilda Cury (1993) “Por exemplo, a produção literária no interior de um jornal, mantem relação com outras notícias, de natureza cultural e política, como o periódico como um todo, com as fotos que o ilustram, como o retrato faz da cidade e de seu quotidiano”. Assim sendo, é importante localizar, recuperar e editar estes textos que só circularam em sua época na imprensa.
Iniciamos este número com 3 artigos que se debruçaram sobre arquivos de escritores custodiados pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (AMLB/FCRB). O de Leandro Garcia Rodrigues, intitulado (Des)arquivando ideias, sintetiza um misto de relato pessoal com vivências administrativas, primeiro, como aluno de pós-graduação, tendo realizado um estágio no AMLB; e segundo, como professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na condição de diretor do Acervo dos Escritores Mineiros (AEM/UFMG), relembrando problemas e avanços conquistados.
Luciana Paiva de Vilhena Leite e Marcelo dos Santos se debruçaram sobre o manuscrito do poema “Graciliano Ramos”, que se encontra no arquivo pessoal do poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Este estudo muito contribui para delinear uma poética traçada a partir do manejo do sinal gráfico e sintático dos dois-pontos registrados no poema oferecendo uma diversa possibilidade de leitura do trânsito entre manuscrito e versão publicada.
O terceiro artigo a trabalhar com os acervos do AMLB é o de Mônica Gomes da Silva centrado no arquivo do escritor Murilo Miranda (1913-1971). A partir da prospecção do seu acervo, a pesquisadora faz um levantamento e uma análise de parte da correspondência passiva do escritor recebida entre as décadas de 1930 e 1940 tendo como foco o movimento epistolar que animou a produção da Revista Acadêmica.
Na sequência, temos três textos cujas pesquisas se debruçaram sobre a imprensa brasileira de forma diversa. O primeiro, de Eliane Vasconcellos e Moema Mendes – O desafio continua: Corina Coaraci na Illustração do Brazil - dá continuidade a uma série de artigos publicados anteriormente como parte de um Projeto de pesquisa sediado pela Fundação Casa de Rui Barbosa que tem por objetivo a elaboração de uma edição anotada das crônicas publicadas por Corina Coaraci, na imprensa do Rio de Janeiro, do século XIX. Este artigo em particular, além de apresentar a escritora, dá as diretrizes de como foi organizada a edição anotada dos textos publicados na revista Illustração do Brazil. Em Machado de Assis: de ficções e realidades
O artigo de Rodrigo Fialho Silva e Valéria Cristina Ribeiro Pereira, leitoras do Jornal das Famílias, em Machado de Assis: de ficções e realidades é resultado de reflexões sobre a questão da condição de leitura feminina, confrontada com estratégias narrativas, utilizadas pelo escritor Machado de Assis, nas publicações do Jornal das Famílias que daí resultam ou para aí convergem, no contexto de recepção impressa do Brasil do século XIX.
O artigo de Leandro Valentin e Arnaldo Franco Junior discute a famosa receita para matar baratas, presente em textos de Clarice Lispector, publicados em páginas femininas de jornal e no conto “A quinta história”. Com o título, Da forma simples à forma estética: apropriação, paródia e reflexão sobre o fazer estético em Clarice Lispector, os estudiosos defendem a ideia de que a apropriação da receita de matar baratas e o percurso desses textos nas páginas femininas, até a versão final de “A quinta história”, permitem refletir sobre o fazer estético em Clarice Lispector.
O estudo das fontes primárias, portando, nos permite uma reflexão inter-relacional entre movimentando e acenando a outras abordagens como a de Carla Oliveira e Laura do Carmo que pesquisaram entre outras coisas, sobre os diferentes tipos de edição e suas respectivas relevâncias, de acordo com seus públicos-alvo. As pesquisadoras deste Reflexões sobre edição de textos históricos mostram e defendem que o trabalho de edição, se feito de maneira cuidadosa e adequada, é capaz de revigorar uma obra do passado e, sobretudo, potencializar o que ela tem a oferecer ao longo do tempo.
Claudia Barbosa Reis no artigo, Construindo um museu de literatura, faz uma reflexão sobre as possibilidades de musealização das obras literárias a partir d’O Museu Inocência criado em Istambul (2012). Museu e livro são produtos da imaginação e da inspiração do escritor Orhan Pamuk (1952).
Finalizando o dossiê, temos o artigo de Davi Pinho e Nícea Helena de Almeida Nogueira intitulado, Perspectivas feministas no romance Orlando e no ensaio Um teto todo seu, de Virginia Woolf: ideias que navegam em textos, que apresenta uma reflexão sobre a produção do romance Orlando: uma biografia e o ensaio Um teto todo seu, ambos de Virginia Woolf. São várias as sobreposições apresentadas na forma e no conteúdo que revelam uma linha de pensamento em comum sobre as suas perspectivas feministas. Os dois textos são revisitados na intenção de defender que, ao longo da obra da referida escritora, as mesmas ideias percorrem textos distintos e consolidam o seu pensamento sobre as condições da produção artística de autoria feminina.
As reflexões em diálogo, neste dossiê, consolida a fundamentação teórica e o entendimento da necessidade de conscientizar os futuros pesquisadores de se precaverem, no momento atual, em relação ao desaparecimento gradativo dos acervos o que, com certeza, contribuirá para uma complexidade em relação às pesquisa, em fontes primárias.
Eliane Vasconcellos
Moema Mendes
Referências
PINHEIRO, L. V. R. P. Fontes ou recursos de informação: categorias e evolução conceitual. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, Rio de Janeiro, v.1, n.1, 2006.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1 ed. São Paulo: Objetiva, 2009.
CURY, M.Z. A pesquisa em acervos e o remanejamento da crítica. Manuscrítica, São Paulo, v.1, n.4, p. 78-93, 1993.