Editorial

Há pelo menos seis anos tenho trabalhado com assuntos relacionados ao Patrimônio de uma forma geral e o que noto, com relativa inquietação, é uma discussão que se circunscreve sempre nos mesmos autores e pautas. Observo com maior incômodo ainda a equivocada relação desde temas apenas como livros antigos e/ou raros e arquivos históricos a uma quase dissociação da conservação preventiva.

Sim, também é um tema que linguisticamente tem se mostrado difuso, com conceitos e significados nem sempre convergentes, por conseguinte precisa de mais estudos.

Nessa perspectiva, ao propormos o nome do dossiê de “Patrimônio Bibliográfico e Documental” trata-se muito mais de um ponto de apoio epistêmico do que uma indicação do que seria o “ideal”. Isto, o tempo próprio da Ciência há de decantar.

Nos últimos tempos notei igualmente que a academia quase aceita como doutrina assente esse cenário. A consequência disto não tem atingido somente  o campo teórico, mas também a própria gestão das nossas bibliotecas e arquivos.

Contudo, não sou o único a notar isto, obviamente. Um grupo de colegas bibliotecários, conservadores-restauradores e historiadores também já perceberam isso e vêm tentando, aos seus modos, colaborar com o debate.

Ao acompanhar mais de perto a produção de colegas do México, Colômbia e Peru, sobretudo, passei a observar uma percepção bem mais contemporânea e até mesmo, posso dizer, mais realística com os conceitos de cidadania.

Em outra ocasião eu mencionei que a necessidade de justificar sua própria existência é tarefa quase diária em algumas Bibliotecas e Arquivos e, na atual conjuntura, seus desafios aumentaram. Ao associar os conceitos de Patrimônio Bibliográfico e Documental a esses dois espaços é, praticamente lugar-comum, virem à mente acervos históricos e, consequentemente, os adjetivos como “antigos”, “velhos” ou outros que buscam denotar obsolescência, algo descartável etc.

Por isso, expresso aqui meu profundo agradecimento à Ana Lígia Medeiros não apenas pelo aceite da proposta, mas também pelo apoio e incentivo mesmo no meio de tanta adversidade. Todo meu respeito e admiração por sua trajetória.

Agradeço minha colega no Departamento de Biblioteconomia da UNIRIO, Professora Doutora Simone Borges Paiva Okuzono que é a quem de fato devo a coragem de propor um projeto como esse.

 Sou extremamente grato á cada um dos autores convidados que puderam generosamente contribuir para esse projeto e grato também pela delicadeza que tiveram ao declinar os queridos colegas que por uma série de razões não puderam estar presentes.

Os textos aqui reunidos são de autores que puderam atender ao convite, ainda que no meio dessa situação tão caótica. Dizemos isto porque, com certeza teríamos muitos mais colegas para contribuir com suas reflexões. Mas estamos só começando. Ao que consta, este é o primeiro dossiê inteiramente sobre esse assunto e por isso desejamos, com esperança, que outros mais surjam, pois urge que a discussão componha mais pautas de eventos de Biblioteconomia, Arquivologia, Museologia e Ciência da Informação. 

Um dos méritos deste volume é trazer um conjunto de textos que felizmente estão longe de ser uníssonos. Assim, são expostos diferentes pontos de vista, inclusive no que concerne aos conceitos. A presença de autores de outros países além do Brasil, como México, Colômbia, Peru e Espanha ajuda a pensar como está o próprio estado da arte em nossa região por exemplo.

Os autores de língua hispânica apresentam projetos nacionais e regionais, bem como reflexões que evidenciam a contemporaneidade dessa discussão, exortam uma aproximação com os direitos humanos, inclusive. Contribuem também para exemplificar a proximidade com a História do Livro e a Bibliografia Material. Ou melhor, como ambas podem auxiliar na própria caracterização e identificação do patrimônio bibliográfico e documental.

De maneira análoga os brasileiros, apresentaram pesquisas de um amplo espectro incluindo algumas propostas de abordagens conceituais e aproximações com campos como a conservação/restauração. Trouxeram ao debate algo ainda tão pouco explorado, como Educação Patrimonial em Bibliotecas.

Se alguns apontaram com pesar o descaso e o abandono, a escolha para a seção documento tentou trazer esperança e apresentar a dupla preservação tanto pela restauração quando pela transcrição paleográfica.  

Ainda que não sejam todos na minha linha de teórica, todos os textos costuram-se também por abordagens interdisciplinares. Uma das grandes qualidades de uma revista como essa, ou seja, que ainda não está atrelada a alguns protocolos foi a inestimável possibilidade de reunirmos textos de bacharéis, mestres e doutores, bem como de professores e técnicos.

Isto permitiu que a discussão orbitasse pela teoria e pela aplicabilidade prática e como se complementam num único objetivo que foi expor suas ideias e inquietações sobre o tema central deste dossiê. Graças a essa característica também acreditamos ter sido ilustrado e exemplificado que não se trata de um assunto apenas difuso, mas multifacetado e absolutamente atual.

Gostaria de dedicar esse dossiê à Fundação Casa de Rui Barbosa no seu nonagésimo ano de existência. Ao pensar esse dossiê, a primeira revista que veio à mente foi justamente essa, pela linha que vem adotando e por partir de uma instituição que há décadas aguerridamente vem defendendo, salvaguardando e difundindo justamente nosso patrimônio bibliográfico e documental. Portanto, não poderia haver maior sinergia.

Dedico também à Fundação Oswaldo Cruz que este contemplou 180 anos, com uma biblioteca que é um dos nossos maiores patrimônios bibliográficos de ciência e de tecnologia e que, concidentemente, neste ano de efeméride tem demonstrado que está cada dia mais viva, ativa e nos ajuda a exemplificar o poder, a força e a necessidade da Ciência.  

Vida longa à Cultura!  Vida longa à Ciência! Vida longa aos nossos pesquisadores e suas instituições!

Apesar desse tom festivo e eufórico, aqui há autores de cinco países que têm sofrido terrivelmente com o COVID-19, muitos de nós, inclusive perdemos familiares, amigos e colegas de trabalho ao longo desse processo.

O poeta Cazuza dizia “O tempo não para, não para não”, e nós dizemos “A pesquisa não para”. Por eles, por esses que perdemos, ousamos seguir e persistir.

Desejamos a todos uma boa leitura deste projeto feito com imenso cuidado por todos nós.

 

Professor Doutor Fabiano Cataldo de Azevedo (Editor AdHoc)
Departamento de Biblioteconomia
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

 

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Publicado: 2020-12-31

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